Estava a pensar no Sudão do Sul, país incontrolável a vistas nuas, chão traiçoeiro, onde a comida, quando existe, é temperada de lágrimas. Em Juba estive três dias detida, em recolher obrigatório no hotel. A prisão não era má comparada com o mundo que cabia fora dos muros e do arame farpado.
Nesse lugar desmapeado do mundo, com o tempo em pausa, rodeada de diplomatas, jornalistas, espiões, militares e aventureiros tive várias conversas lentas, memoráveis. Aguçadas pelo gume da curiosidade.
Lembro-me, com todo detalhe de uma, com um chá sobre a mesa, já nem distinguia as pernas do assento do sofá, tão longa ia a conversa. À minha frente um piloto da South Supreme Airlines. Poucas linhas aéreas estão dispostas a correr o risco de fazer voos domésticos no Sudão do Sul. A lista de perigos sacode mesmo os mais intrépidos. Um deles é o estado dos aviões, velhos e sem manutenção, outro o bafo gélido da guerra.
Mesmo com o conflito inflamado a South Supreme Airlines nunca deixou de voar.
O nome das linhas aéreas, tal como a publicidade da cerveja Sul-Sudanese White Bull, “The Taste of Progress”, aconchega um mundo que contrasta com a realidade.
Quando se aterra de depois de um voo com a South Supreme Airlines a gratidão por estarmos vivos submerge-nos. É como embarcar num Matatu. Os passageiros embarcam pela abertura usada em tempos para lançar bombas e o ruído do Antonov 26 recorda à maioria dos sudaneses do Sul os bombardeamentos pelo regime de Cartum na guerra anterior.
Todos os voos têm histórias. Conto apenas uma. Uma certa zona do Sudão do Sul estava a ser evacuada. No aeroporto viviam-se tempos de apocalipse com todos a tentar um lugar a bordo para chegar à capital. Entre os desesperados estava um arrogante diplomata europeu. Por entre a algazarra gritava: “exigo um lugar a bordo”. “Não temos lugar, tem que esperar pelo próximo avião”. Com a arrogância dos que têm medo: “exijo um lugar, deêm-me um lugar”. “Se lhe arranjarmos um lugar qualquer, viaja ?”. “Sim”. Foi nesse dia que um arrogante europeu viajou sentado numa cadeira de plástico, à qual serraram as pernas como se faz habitualmente no Sudão do Sul quando estas se destinam a crianças. Supreme.
Recordo isto, penso no trabalho que dou ao meu anjo da guarda e nas histórias que não partilho para não preocupar família e amigos, e sinto uma saudade imensa de olhar pelas janelas que dão para as traseiras do mundo.
Afinal quantos lados tem o mundo no parecer dos olhos do camaleão ? A pergunta é do Mia Couto, tatuei-a na alma.
( a fotografia tirei-a em frente ao meu local de trabalho)
Após a leitura do seu comentário, fui espreitar o site da companhia aérea.
Até me arrepiei. Caíu um avião!
Cuide-se por favor.
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Eu sei. Por isso decidi partilhar este episódio.
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Até me arrepio… de uma quase-inveja.
(um) beijo de mulata
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