1. Quando os anos chegam ao fim reviramo-los do avesso como um alfaiate vira um casaco velho para lhe inspeccionar o forro e decidir se tem préstimo. Ninguém sabe muito bem o que fazer com 2016.
Aquilo que era visto como uma hipótese extravagante, o Brexit e a eleição de Donald Trump, materializou-se. Algumas das poucas certezas que se podem extrair do ano que termina é que o comportamento dos eleitores se tornou imprevisível e as Fake News, eufemismo para mentiras e campanhas de desinformação, se tornaram num elemento não discipiendo do debate público, influenciando sufrágios.
Consciente deste fenómeno o ministro do Interior alemão, Thomas de Maiziére, anunciou a criação de um centro de combate a campanhas de desinformação. “A aceitação da era pós-facto seria o equivalente a uma capitulação política“, sublinhou o ministro. Berlim fala abertamente da ameaça que hackers russos, a soldo do Kremlin, possam representar nas legislativas.
Como observou Álvaro de Vasconcelos, a propósito dos resultados eleitorais nos Estados Unidos, “as redes sociais retiraram o monopólio às elites, nomeadamente aos meios de comunicação tradicionais, que acabaram em circuito fechado, a pregar para os seus leitores, desconectados com uma parte significativa da população”.
A escolha dos americanos não apenas abre uma longa fase de insegurança política e estratégica na Europa, como serve de estimulante para os populismos holandês, francês e alemão.
Em 2017 não há muitas razões para optimismo quando se olhar para o outro lado do Atlântico. As escolhas para a administração Trump comportam o o risco de sérios retrocessos nos direitos individuais e das minorias e indiciam que o acordo de Paris irá para a gaveta. Resta agarrar-nos à esperança, como faz, numa longa entrevista ao “Die Zeit“, Wolfgang Schäuble, o ministro das Finanças germânico, um atlantista e uma velha raposa politica, que é “o cargo que faz o homem e não o homem que faz o cargo“.
2. O calendário europeu em 2017 será marcado por eleições em 3 dos países fundadores do projecto europeu, Alemanha, França, Holanda, a que talvez se junte outro membro fundador a Itália.
“À medida que subiam as águas do populismo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, e na Holanda e na França, a Alemanha converteu-se cada vez mais no centro estável da Europa, e até do Ocidente. A Alemanha é o centro geográfico, económico, político e até social, e o centro desse centro é Angela Merkel”, escreveu o historiador britânico Timothy Garton Ash. E a questão central, não apenas para a Alemanha, mas também para a Europa, é se o centro resistirá ao teste de esforço eleitoral?
Antes de me debruçar em concreto sobre a Alemanha, arrisco três prognósticos. Geert Wilders – em cujo programa se defende o encerrar de fronteiras, a proibição de mesquitas e saída do Euro e da Europa – não será primeiro-ministro, a Holanda terá um governo de constituição semelhante ao de 2012, com um centro alargado.
Marine Le Pen passará à segunda volta, todavia não chegará ao Eliseu, porque a direita democrática e a esquerda farão uma aliança para travar a Frente Nacional.
Angela Merkel será eleita pela quarta vez como chanceler da Alemanha, e provalmente ultrapassará os 14 anos de mandato de Konrad Adenauer e igualará os 16 de Helmut Kohl. Talvez numa nova constelação formando governo com os Verdes e os Democratas Liberais.
2017 porá à prova o projecto europeu, mas os grandes momentos de crise podem ser em simultâneo grandes oportunidades e esta poderá ser a ocasião para a revisão e adequação dos tratados à nova ordem europeia, Schäuble dixit.
3. Vista do exterior a campanha eleitoral alemã será dominada pela segurança interna e pela política de refugiados.Vista do interior a estes dois temas soma-se a política de desenvolvimento e o trazer África para a agenda internacional. Em Junho terá lugar em Berlim uma conferência internacional para debater a parceria com o continente africano e na cimeira do G20, que a Alemanha preside, África será tema prioritário. Refugiados e África, com a sua múltipla causalidade, não se pensam um sem outro.
Olhemos de novo para o forro do casaco, não apenas de 2016 mas dos anos que o antecederam, se é verdade que nenhuma nação parece ser imune ao contágio do nacionalismo identitárioe ao revivalismo do conservadorismo religioso – olhe-se para a Polónia ou a Húngria – e poucas escapam à desinformação sobre os muçulmanos e à colagem abusiva de uma religião ao terrorismo, também é verdade que a Alemanha, por um conjunto de boas razoes é um país “diferente“.
4.Mais de setenta anos após Auschwitz, o “Lager” que se tornou no símbolo do genocídio dos judeus, a Alemanha fez um longo, intenso, doloroso e exemplar percurso de confronto com o seu passado. Exercício que se foi intensificando à medida que os 12 anos do III Reich se foram distanciando e que se acentuou com a reunificação do país em 1990.
Fritz Bauer, o procurador público que esteve na origem do processo de Adolf Eichmann, afirmava que ele deu à Alemanha uma oportunidade de usar o sistema legal como forma de auto-reflexão e de aprendizagem sobre “os perigos da nossa história”.
Nunca nenhuma sociedade documentou de tal forma o seu maior crime colocando no coração da sua capital um extraordinário monumento às vítimas do nacional-socialismo desenhado por Peter Eisenman. O monumento, lancinante de sobriedade, demonstra que “não existe nenhum recalcamento do crime que faz parte da identidade alemã”, na análise de Wolfgang Thierse, ex-presidente do Bundestag. As dimensões deste Memorial tendem a obscurecer as centenas de monumentos semelhantes espalhados por toda a Alemanha, de museus a campos de concentração, passando por centros de documentação, placas recordando os resistentes ou assinalando a vida judaica. Destinam-se a lembrar as vítimas, mas também a educar e informar os jovens alemães sobre os perpetradores e os seus crimes.
Esta consciência histórica, e a maturidade da democracia alemã, fez com que as reaccoes ao atentado na Breitscheidplatz, em pleno coração simbólico de Berlim, tenham sido pautadas pela Vernunft, a tão característica razoabilidade alemã. As tentativas do partido de extrema-direita, AfD, Alternativa para a Alemanha, de manipular a opinião pública foram um tiro no próprio pé.
Existem dois outros bons motivos para poder prever com alguma seguranca que a Alemanha não será contagiada pelo populismo. A economia mantém-se sólida e uma imprensa tabloíde relativamente sensata.“Ao contrário do Reino Unido, a Alemanha também tem uma imprensa popular relativamente responsável. Apesar de o Bild, o equivalente ao Sun, ter vindo a criticar duramente o euro, o tabloide alemão foi notavelmente contido no tratamento da crise dos refugiados“, nota Timothy Garton Ash.
5. Gobbledygook é um neologismo que descreve linguagem obscura ou difícil de compreender. A palavra, inspirada pelo grugulhar do peru, foi criada em 1944 pelo congressista norte-americano, Maury Maverick, que estava farto da linguagem indecifrável usada pelo governo e pelos políticos.
Quem tem estado minimamente atento à política alemã sabe que um dos pontos fortes da chanceler é a ausência de gobbledygook no seu discurso. Angela Merkel não é “motivada pela ideologia” como salienta uma das suas biógrafas, “Jacqueline Boysen, “ ela toma as suas decisões baseada em dados, estatísticas e factos”. Convém acentuar a palavra factos porque eles falam por si. Olhe-se para o estado da economia alemã, mas não apenas. Não devem ser subestimados os esforços que fez para manter a Europa unida. A Grécia não abandonou o euro, os europeus do norte aceitaram pagar bail-outs, a Espanha e Portugal fizeram reformas que poucos julgaram possíveis.
Em tempos de profunda incerteza é de alguma forma tranquilizador poder contar com uma política como Angela Merkel. Se ficarmos nas mãos dela, estaremos em boas mãos.