Escrever é gritar sem fazer ruído. Faço-o depurada de rancor, com a alma limpa como se fosse o dia antes do meu funeral. A rotação da terra em torno do seu eixo fez o seu trabalho e a ilusão desapareceu num crepúsculo que não deixou saudade. Marcas isso sim e curiosidade. Uma inquietante e profunda curiosidade.
Não sei por onde andas e já não me recordo com nitidez dos contornos do teu rosto. Mas das tuas palavras. A Inês Pedrosa diz – já te imagino o pensamento “outra vez a Inês Pedrosa” – que a “paixão torna-nos irradiantes de luz, mas não exactamente de lucidez”.
Quando te conheci a lucidez dissipou-se. Permiti-te tudo. Não me revoltei com o germe de guarda de campo de concentração que se aninhava no teu interior. Nem com a falta de empatia ou a insensibilidade. O exercer poder sobre o outro é viciante, e não apenas para os que o praticam. Corrompe também os que a sofrem essa violência, nalguns casos torna-se quase numa espécie bizarra de prazer, talvez porque se confunda com experiência da vertigem, da entrega absoluta. Viciei-me na dor, desde que estivesses por perto. Desconheci-me e desconheci-te.
Pergunto-me o que leva alguém a humilhar assim? Que obscura frustação? Que sofrimento? A paixão pode precisar de gritos, o amar é feito de palavras e temperado pelo silêncio.
Fui o palco onde encenaste os teus medos e onde quase me sufocaste. A solidão não se encontra. Nós é que a fazemos. E nunca estive tão só como quando “fui tua”. Quis-te colher as virtudes que não tinhas e esqueci-me cultivar as que facto eram minhas.
Sempre tive a impressão de que o abuso, o grito, fosse apenas o extravasamento de um grande silêncio. Querido desconhecido continuas a fazer o mesmo? A dizer o mesmo? A exercer o teu poder obsceno?
Sei que não lerás esta carta e que nunca terei resposta à minha curiosidade. Mas hoje sei que muitos homens morrem, tu estás morto por dentro.
* Carta inspirada por um artigo do El Pais e por histórias que fui ouvindo.