Os nossos amigos de infância nunca são pessoas comuns. São o pavimento da memória de dias felizes, de um tempo mágico onde tudo estava certo.
Achamos que nada pode acontecer aos nossos amigos de infância com a mesma naturalidade com que à mesa do café se conversa de trivialidades. Será por inocência? Pelo medo de quebrarmos por dentro se algo lhes acontecer? Ou por nos confrontarmos com a nossa própria fragilidade?
No momento em que escrevo um amigo de infância está no bloco operatório. A ser amputado abaixo do joelho. Um daqueles revezes da vida para os quais ninguém está preparado a meio dos quarenta anos, idade em já temos um passado, porém um futuro se desdobra à nossa frente como uma carta marítima com arquipélagos a aportar.
Sábado estive à beira dele, acompanhada por outros três amigos. Cada cama de hospital é a janela para o mundo de alguém. Ali a vida fica mais nua e destilada à essência: o paliativo para o sofrimento não é um antidepressivo, nem um ansiolítico, é um ombro humano.
“Sinto-me injustiçado. Porque é que isto me aconteceu?”. Não tenho resposta e abraço-o. Nestas situações todos dizemos mais ou menos a mesma coisa, mas o dize-lo, o mostrar que não está sozinho para enfrentar a dor física e dor psicológica da amputação, ameniza a tristeza. Tenho a convicção profunda que é preciso nomear os sentimentos. Dizer que se gosta, acarinhar, abraçar. Numa época em que as palavras se dissolvem no silêncio dos ecrãs e dos desumanizados chats os valores estão nas nossas mãos.
A vida é um caos, por vezes não tem sentido nenhum e é isso que a torna fascinante, pelo desafio de resistir. De colar os cacos.
O meu amigo, de hoje para a frente, será sempre um amputado. Um amputado pai. Um amputado inteligente. Um amputado que é um chef. Um amputado que é uma pessoa plena e bonita. A vida dói, mas não acaba aqui. E não acaba aqui porque nós precisamos dele. Precisamos do nó direito da sua amizade. Precisamos da sua coragem.
Não pretendo que seja fácil para o meu amigo o despertar na cama do hospital, não serão fáceis os dias que seguirão, a adaptação à prótese, o olhar-se ao espelho. Mas a força reside na escolha e sobretudo na recusa.
Permitam-me (permite-me meu querido) falar de escolhas e de recusas. É extremamente importante sabermos o que não queremos ser, o que não queremos fazer, por onde não queremos ir. As recusas são estruturantes, são como podar uma roseira para determinar os seu crescimento e onde desabrocharão os botões na próxima Primavera, ou seja o que acentuamos ao longo da nossa vida.
(Recusa-te a ser fraco. Com quem é iríamos beber um gin, com quem iríamos gozar no karaoke? Não te atrevas a desistir. Por nós.)
Um brinde a amizade, sem duvida um dos sentimentos mais belos que se pode ter por alguém.
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a vida é assim, um constante trambolhão. valem, acredito piamente, as amizades que nos aparam.
que corra pelo melhor.
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