No português melodioso do Brasil há palavras que nós portugueses não usamos e onde cabem mundos.
Hoje descobri uma nova. Piruá. É o nome dado aos grãos de milho que não rebentam, não se transformando em pipocas.
O autor brasileiro Ruben Alves escreveu que “tem muita gente piruá neste planeta”. Pessoas que não reagem ao calor, que resistem a transformar-se em algo de melhor, mantém-se frios, fechados como um grão de milho que se recusa a tornar-se algo melhor.
De cada vez que viajo para os chamados “países em desenvolvimento” – desenvolvimento esse deus maior da geografia confortável- penso nos piruá, mesmo que até hoje não lhes tenha dado esse nome.
Em Cochabamba estou hospedada no melhor hotel da cidade, o Gran Hotel. Para ele convergem os casamentos dos cochabambinos de “boa família”. Aqui se encontram os bolivianos que possuem o dom da conversa social, cujo repertório abrange desde as clássicas considerações sobre o tempo, passando por impressões sobre sucessos musicais até picardias sobre Evo. Aqui fica a Bolívia dos privilegiados e dos Visa Gold.
Todos as manhãs o jipe da cooperação alemã me recolhe na praça em frente ao hotel. Nele as “trancaderas” (filas de trânsito) até Quillacollo, onde estou a trabalhar, tornam-se mais suportáveis. Embora eu preferisse o desconforto autêntico dos micros, os tão deslumbrantes, pelo seu colorido, como perigosos mini-autocarros. Talvez eu os pinte com a tinta da melancolia porque apenas os uso quando ando à cata de aventura e em pequenas doses.
Estava absorta na contemplação dos micros e das suas insólitas pinturas e inscrições , “amante latino”, “a tua mulher traiu-nos a ambos”, quando da minha fortaleza de aço a vi. Longas tranças de cabelo já cinzento, pollera (saia típica das mulheres indígenas bolivianas) azul celeste que a sorrateira infiltração do pó tornava mais doce. Terá uns sessenta anos, o rosto sulcado de rugas que se entrecruzam em redor de uns olhos pequeninos, amarelados, de uma tristeza particular, como que abrindo-se para uma paisagem de ruínas. Pela mão uma menininha morena de uns sete, oito anos. As mãozinhas seguram com firmeza uma caixa de pastilhas elásticas e chocolates de duvidosa origem. Arriscavam-se por entre a desordem de movimento das geringonças que por aqui circulam e o espectáculo quotidiano de andrajosos malabaristas.
Baixei o vidro e, indiferente à impaciência e buzinadelas, comprei dez bolivianos de amolecidos chocolates.
Da janela a paisagem até Quillacollo não se oferece como um repouso. À nossa frente, na única (auto) estrada que liga Cochabamba a La Paz, e cujo número de faixas depende da vontade dos condutores, um carro sem matrícula, um entre milhares na Bolívia, país onde existe o extraordinário sindicato dos taxistas ilegais. Branco, de pintura descascada e idade indefinida, no interior dois adultos, e cinco crianças de uniforme escolar, rostos radiosos.
Pelas janelas abertas do carro escapava-se uma música, celebrando o Papa Francisco (que visitará a Bolívia em Junho), entoada pelos passageiros em afinado coro.
Sem aviso prévio tomou-me a comoção. A trajectória de uma vida tem mais do que o visível. É múltipla e habita o território das possibilidade.
Comecei a pensar nas minhas escolhas. Há muito que tento olhar para além dos meus metros quadrados de mundo e amar para lá das fortalezas de aço que me transportam.
No filme Precious surge a nada altura uma linha maravilhosa.”Que bom que Deus, ou não sei quem inventou os novos dias”. Em que nos podemos reinventar. Ser pipoca e não piruá.
Adorei a expressão, e o texto! 🙂
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Mas afinal, ao contrário do milho, só depende de nós ser pipoca… 🙂
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