Sabem qual é uma das coisas mais espantosas da Bolívia? O relógio. O oficial. A velocidade com que correm as horas não mudou, apenas o sentido em que giram os ponteiros. Aqui giram para a esquerda.
Desde a instauração do estado plurinacional da Bolívia, em 2009, que se criou um vice-ministério da descolonização para “recuperar valores ancestrais da cultura andina”. O direito romano foi substituído em algumas regiões pela “justiça comunitária”, os edifícios públicos ostentam agora as duas bandeiras nacionais, a multicolorida whipala e a de 1851, oficialmente adora-se Pachamama e anuncia-se que corre o ano 5522 pelo calendário andino amazônico.
A descolonização chegou também aos relógios cujos ponteiros, desde Junho, passaram a mover-se para a esquerda. Esta mudança foi explicada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da Bolívia, David Choquehuanca – o mesmo que pretende que as escolas incluam folhas de coca no pequeno almoço dos alunos, devido ao seu “valor nutritivo – da seguinte forma: “estamos no sul e o Governo boliviano está a recuperar o nosso sarawi, que significa caminho (em aimara). De acordo com o nosso sarawi, de acordo com o nosso Nan (em quechua), os nossos relógios deveriam girar para a esquerda”.
O primeiro relógio a cumprir o seu desígnio descolonizador foi o da fachada da Assembleia Legislativa Plurinacional, na praça Murillo, em La Paz. A numeração romana foi substituída por números árabes, os quais do um ao cinco, se situam à esquerda e, do sete ao onze, à direita.
Não consigo evitar, mas face a estes relógios sinto uma espécie de angústia de ex-colonizador a olhar para ex-colonizado.
PS- Reconheço o papel que o Evo Morales teve e tem na defesa dos direitos das populações indígenas que são majoritárias na Bolívia, todavia perturba-me a fixação no simbólico ao invés da introdução de verdadeiras e necessárias reformas políticas. Há uma pergunta para qual ainda não encontrei resposta: se para os Aymara, como Evo, a comunidade é mais importante do que a hierarquia, porque se perpetua ele no poder? Acomodam-se os postulados culturais à conveniência ?