“Não há nada mais triste do que enterro de pobre, porque pobre começa a ser enterrado em vida”.è com palavras que a escritora e jornalista brasileira Eliane Brum abre uma reportagem publicada em 1999, no jornal Zero Hora, de Porto Alegre.
Cláudia da Silva Ferreira era auxiliar de limpeza, condenada a vender barato o seu trabalho braçal , tão barato que mal conseguia alimentar-se a si e à sua família. Cláudia cuidava de quatro filhos e quatro sobrinhos no morro da Congonha, uma favela no Rio de Janeiro.
Cláudia saiu para comprar pão e foi apanhada por uma bala perdida numa troca de tiros entre criminosos e a polícia militar, provavelmente nunca saberemos quem a disparou.
O parêntesis é aqui necessário: a polícia brasileira mata cinco pessoas por dia. Milhares de pessoas por todo o Brasil entram num posto policial e desaparecem. Como Amarildo de Souza na Rocinha, que deu um nome e um rosto a todos eles. E cuja notícia do desaparecimento, num país onde a morte ou desaparecimento dos pobres nem uma nota de rodapé merece, somente impunidade e silêncio, pode significar – com reticências – o início de uma mudança.
Voltemos a Cláudia a mulher, negra, de 38 anos. Três dos polícias da 9° Batalhão da Policia Militar, que participaram no tiroteio pegaram na mulher ferida, ainda com vida e colocaram-na no porta bagagens, não no banco traseiro, no porta bagagens. Durante a perseguição policial , o porta-bagagens abriu-se e Cláudia foi arrastada durante centenas de metros. Apesar dos avisos de motoristas e pedestres só muito tempo depois é que a polícia militar parou o carro e colocou Cláudia no seu interior. Chegou morta ao hospital.
“Acham que morra na comunidade é bandido. Tratam a gente como se fosse uma carne descartável”, revoltou-se a com desesperança a irmã de Claúdia, o brilho dos olhos extintos pelas lágrimas. “ Esses PM precisam de responder pelo que fizeram”.
Os três polícias militares foram detidos e já estão de novo em liberdade. Aqui novo parêntesis é necessário: os três polícias constam como envolvidos em 62 autos de resistência (mortes de suspeitos em confrontos com a polícia) em que terão morrido 69 pessoas.
Nada de novo na história de Cláudia. Apenas uma repetição.
Quanto vale a vida de um pobre no Rio do Papa, da Copa e dos Jogos Olímpicos. Quanto vale a vida de uma negra? E quanto brasileiros têm compactuado com isso quando não protestam contra o “sumiço de bandidos”? São incómodas as perguntas? E o que são a morte de Cláudia e o desaparecimento de Amarildo ?
“Você está na sala assistindo à TV. Ou está no restaurante, com seus amigos. Ou está voltando para casa depois de um dia de trabalho. Você ouve tiros, você ouve bombas, você ouve gritos. Você olha e vê a polícia militar ocupando o seu bairro, a sua rua. É difícil enxergar, por causa das bombas de gás lacrimogêneo, o que aumenta o seu medo. Logo, você está sem luz, porque a polícia atirou nos transformadores. O garçom que o atendia cai morto com uma bala na cabeça. O adolescente que você conhece desde pequeno cai morto. Um motorista está dirigindo a sua van e cai ferido por um tiro. Agora você está aterrorizado. Os gritos soam cada vez mais perto e você ouve a porta da casa do seu vizinho ser arrombada por policiais, que quebram tudo, gritam com ele e com sua família. Em seguida você vê os policiais saírem arrastando um saco preto. E sabe que é o seu vizinho dentro dele. Por quê? Você não pergunta o porquê, do contrário será o próximo a ser esculachado, a ter todos os seus bens, duramente conquistados com trabalho, destruídos. Se você está em casa, não pode sair. Se você está na rua, não pode entrar.
O que você faz?
Nada.
Você não faz nada porque não aconteceu com você. Você não faz nada especialmente porque se sente a salvo, porque sabe que não apenas não aconteceu, como não acontecerá com você. Não aconteceu e não acontecerá no seu bairro. Isso só acontece na favela, com os outros, aqueles que trabalham para você em serviços mal remunerados.”
Eliane Brum, Também somos chumbo das balas, Julho 2013
Se tivesse palavras para isto, deixava um comentário.
Mas não.
Mudo de assunto: adoro a Eliane Brum.
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Ola, como vai? seria possível ter um email de contacto por favor?
Gostaríamos de propor alguma forma de parceria.
Cordialmente,
Henrique Andrade
Zarpante
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Hmfs@hotmail.de
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