
1. Lá no fim do mapa do Brasil ou no princípio, tudo uma questão de ponto de vista, encostado à Guyana e à Venezuela fica Roraima, estado brasileiro onde cabem dois Portugais, com quase dois mil quilómetros de fronteira aberta a todos os tráficos.
A cerca de 230 quilómetros de Boa Vista, capital de Roraima, fica a cidadezinha venezuelana de Santa Elena de Uairén. Santa Elena está para o Brasil como o feijão para o arroz. Como o açúcar para o café. Aqui as histórias são sobre a extraordinária vida comum, histórias que embora interpretadas como banais estão longe de o ser. Basta subverter o foco.
Existem duas formas de visitar lugares: com ou sem inocência. A primeira é descomprometida, mais fácil. A segunda pode ser uma viagem desesperadora para dentro do espelho.
Depois de ler e escutar muitas histórias sobre tráfico (humano, de droga e contrabando) decidi alugar um Volkswagen Gol (o carro mais roubado no Brasil, como vim a descobrir depois). Comecemos pela paisagem. Cada centímetro vale o sacolejar do caminho. Passa-me pela cabeça que a Amazónia é tão antiga (geologicamente é anterior à Europa e aqui existiram civilizações culturalmente complexas há milhares de anos) como aparentemente infinita.
O vento assobiava e arremetia contra os vidros, quilómetros e quilómetros de terras indígenas, malocas (construções redondas com tectos em palha de coqueiro buriti), malandros da estrada, insolentes ultrapassagens nos limites. Banal neste pedaço de Brasil, cortante de belo, cortante de cruel.
Não há um único posto de abastecimento no caminho.

Almocei picanha em Pacaraima, a segunda cidade de Roraima e poucos minutos depois atravessava a fronteira. Sem qualquer tipo de controlo. Troquei reais por bolívares num cambista de rua. Em Santa Elena não se aceitam cartões.
A poucas centenas de metros da fronteira, em frente ao monumento de Símon Bolívar e de D. Pedro I, à vista de todos trocavam-se mercadorias de um porta-bagagem para outro, distribuíam-se pacotes por vários carros. A frenética Santa Elena é o supermercado dos brasileiros de classe média e de “formigas” (como são conhecidos no Brasil os pequenos contrabandistas). Roupas, produtos alimentares, brinquedos e sobretudo combustível. O litro de gasolina custa entre 0,40 a 1 real (pouco mais de trinta cêntimos de euro). Recentemente a operação Molotov da polícia federal brasileira levou à detenção de 35 pessoas envolvidas numa rede de contrabando de gasolina.
Cheiro de suor, de comida, barulho em níveis alarmantes, famílias inteiras, adolescentes de calções extra-curtos e havaianas, peles curtidas pelo sol, peles índias, português do Brasil por todo o lado. “É a primeira portuguesa que conheço. É verdade que vocês falam sempre ora pois?”, questiona o brasileiro libanês dono de uma loja de lençóis. “Tenho o canal RTP internacional mas não percebo nada”. Há coisas que não mudam nunca.
Na inevitável Praça Simon Bolívar um artesão vendia umas medalhas. Aproximei-me. São moedas recortadas. Muitas delas de euro, várias moedas de escudo. “Como conseguiu essas moedas?”. “Foi um português que conheci em Buenos Aires que me deu”. Não resisti. Esta portuguesa, em trabalho no Brasil e a caminho de Buenos Aires, comprou na Venezuela a um brasileiro uma moeda de cinco escudos com uma caravela num cordão de cabedal. Senti a dor fininha das saudades de Lisboa, do bairro da minha infância. As memórias podem estar esbatidas, oxidadas pelo passar do tempo, desbotadas como frescos por restaurar. As saudades, porém, têm nome de rua e número de porta.

Antes de voltar para Boa Vista havia que abastecer o carro. Na falta de postos de gasolina e face à proibição de vender gasolina a brasileiros recorro ao “esquema”. Dirijo-me a um dos muitos cambistas. “Combustível” digo. “Siga-me” responde. Entro no carro e vou seguindo a motorizada. “Vou abrir e estaciona ali no pátio”. Atrás do Gol fecha-se um portão. Estarei no filme certo? “Quantos litros ?”. “Encha”. No fundo do quintal, escondido atrás de uma frondosa mangueira fica o depósito clandestino de gasolina. Traz um bidão,dois bancos de madeira e uma mangueira. O resto é um clássico.

2. J.tem o nome numa lista de pessoas marcadas para morrer. Ninguém diria ao ver aquela adolescente, mulata bonita, desajeitada, quase metida dentro de si mesma.
Estamos num bairro na periferia de Boa Vista. Sentada num sofá coberto de azul, numa casa que quase uma cabana, feita de madeira e tijolo artesanal. Panos pendurados no rectângulo das janelas fazem às vezes de vidros. Uma grade aberta serve de porta. No chão um menino de três anos brinca com peças coloridas de uma imitação chinesa de Lego, mas não sorri. É o filho de J..
Acocorada numa cadeira, por debaixo de uma rede (cama de muitos aqui no norte do Brasil), a mãe de J. acompanha a conversa com as repórteres*, cabelo negro amarrado, traços indígenas, com falta de dentes, a imagem-síntese da desprotecção. “Quando ela estava lá esse ‘menino’ sofreu muito. Ficou gritando no meio da noite ‘mamãe está passando mal'”. Lá era em Cuibá, capital do Mato Grosso, para onde J.foi traficada. A aliciadora conquistou a sua confiança, tornou-se sua amiga.

“Eu já conhecia essa menina, aí ela me convidou pelo Facebook para ir trabalhar numa loja de sapatos, disse que ia ganhar bem e eu aceitei sem pensar”. Quando se apercebeu que havia sido enganada disse que não ia ficar, “responderam-me que tinha de fazer ‘programa’ para pagar a passagem e que o dono da já matou meninas que ameaçaram denunciar a situação”. Das onze da noite até ao nascer do sol, as mulheres-meninas prostituíam-se numa boate e na rua, por 150 reais (cerca de 50 euros). Serviço completo.
Do desespero nasceu a coragem uma noite. “Entrei no primeiro carro que parou e contei tudo para esse homem, ele ficou paralisado e me levou para a delegacia”. Após a queixa esteve numa casa-abrigo para mulheres, antes de regressar a casa da mãe. O dono da boate e cabecilha da rede de prostituição foi preso e libertado na mesma noite após ter pago uma fiança. Não é segredo que muitas pessoas influentes em Boa Vista estão envolvidas no tráfico de pessoas e exploração sexual.
“Todas elas relatam que apanham muito. Na Venezuela uma menina de 14 anos voltou grávida sem saber quem era o pai, podia ser qualquer da fila. Conheço o caso de uma menina que tentou fugir sem sucesso. Como punição colocaram o braço dela em cima de um toco e o cortaram com um machado”, conta Socorro Santos, presidente do Comitê de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em Roraima. ” A J. teve muita coragem e destruiu um esquema, pode, espero estar errada, pagar um preço muito alto por essa coragem”, diz enquanto regressamos ao centro da cidade.
Uma menina em Roraima vale no mercado do tráfico de seres humanos 1500 reais (500 euros). Se for menor e virgem o preço sobe. De Roraima as adolescentes são habitualmente levadas para prostíbulos em Manaus ou no Suriname, onde são “preparadas” para trabalhar nas regiões de garimpo da Venezuela e da Guyana.
Face a histórias como estas sinto-me insuficiente.”Viver é rearranjar os nossos cacos e dar sentido aos nossos pedaços, os novos e os velhos, já que não existe a possibilidade de colar o que foi quebrado e continuar como era antes”, escreveu Eliane Brum.
*A história de J. será contada com mais detalhada numa grande reportagem das jornalistas da Rede de Notícias da Amazónia Gecylene Sales e Eanes Silva que tive o privilégio de orientar.
Excellent adventure!
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Era só para dizer “obrigada!”, apesar de mal conseguir respirar.
A gente conhece essas histórias, mas nunca deixam de ser horrorosas.
(E, com que então, vais atrás de um desconhecido para um sítio desconhecido?! Essa também me deixou quase sem respiração.)
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O ir atrás de um desconhecido é prática comum aqui. Se não fosse não poderia verificar/experienciar a história do mercado negro de gasolina. Foi tão tranquilo que ele até me disse “da próxima vez venha cá de novo.Boa viagem e muita sorte”. Os desgraçados dos venezuelanos apesar do “ministério da felicidade” sofrem muitíssimo, há regiões no país que lembram a RDA de prateleiras vazias.
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Porque têm as pessoas, e particularmente as mulheres, de sofrer tanto?
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eu quero ir pra esse lugar maravilhoso, onde tem gasolina barato, tem futuro….!!!
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e o munfo cao.
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Muito bom!!! Uma portuguesa desnudando mazelas nossas, numa região tão esquecida.
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Sou aqui de boa vista e gostei muito dessa matéria , da maneira que você escreveu .
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Fico muito feliz.
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