Edilberto Sena chega, de sandálias, com a sua inseparável pasta e de sorriso estampado. Está sempre a sorrir. É um homem baixo, de olhos claros e cabelo branco, ágil de espírito e ainda mais veloz de língua.
Na pequena e precária igreja da paróquia de São João Baptista, numa comunidade rural de Santarém, recebe os fiéis com um gracejo, um abraço, um carinho. Tem para todos uma palavra. A igreja pintada de verde clarinho, com azulejos de várias cores num improviso de chão, vai-se enchendo aos poucos. Muitas crianças esguias, algumas de traços índios, bebés, mulheres, velhos e um violão. Como podia faltar o violão? Plic, plic, plic. Amachucando o silêncio e a vida como ela é.
O nome deste amazonense de Alter de Chão, com quase 70 anos de idade e mais de quarenta de sacerdócio, chega longe. Madeireiros e produtores de soja não o suportam – peco por defeito na adjectivação – pobres e jovens adoram-no, políticos temem-no e respeitam-no. Foi ameaçado de morte e recebeu prémios pela defesa dos direitos humanos e da Amazónia. Tornaram-se lendários os seus editoriais na Rádio Rural de Santarém de que é coordenador. O presidente da Rede Notícias da Amazónia – uma rede de 13 rádios católicas da Amazónia Legal – é uma figura controversa que não gosta de ser classificado como “ambientalista”, um rótulo “dessas ONGs capitalistas”. Diz defender a Amazónia, a floresta, os seus rios e povos como elementos da criação, recusa os “modelos desenvolvimentista e capitalista” ou não fosse um homem da teologia da libertação.
Antes de começar a missa pergunta. “Quem está aqui pela primeira vez?” Algumas mãos levantam-se. Pergunta-lhes o nome e dá-lhe as boas-vindas. Em seguida diz, “ gostava de vos apresentar a Helena, uma tetraneta de Pedro Alvares Cabral”. Onde está o meu buraco? Dou por mim em frente ao altar a explicar porque estou aqui e o que isso significa para mim. O meu português “esquisito” teve de ser traduzido. E poucos sabiam quem era Cabral.
À saída da igreja Edilberto é abordado. “Padre “sê” precisa ajudar minha sobrinha”. Desenrola-se a história, igual a demasiadas outras neste norte brasileiro. Já tinha lido muito sobre a violência doméstica no Brasil, mas desconhecia-lhe um rosto. A sobrinha é uma mulher-menina, de olhos desbotados e shortinho, com dezanove anos é mãe um bebé de um mês. O companheiro, dois anos mais novo, bate-lhe, com maior violência quando está bêbado, o que é mais regra do que excepção. Quando ela se quis separar ele raptou a bebé e proibiu a avó (paterna) de a entregar à mãe. “Padre eu quero fugir dele, ele só volta de tarde, quero sair deste bairro, mas só com a minha filha. Me ajuda a buscar o bebé”. Fiquei desconcertada, ouvia como quem assiste a um suplício. Edilberto não hesitou. Que se dane a reunião de grupo de jovens que nos esperava, “explicaremos o atraso”. Entrámos no carro, percorremos ruas esburacadas de terra vermelha, escorregadias da chuva. Parámos junto a um casebre de madeira e telhado de zinco. Bem escuro no interior. O diálogo foi breve. A bebé, alimentada nos últimos dias a leite em pó vulgar, foi depositada nos braços da mãe. No porta-bagagem couberam os seus pertences. Um saco negro, pequeno, de plástico com roupas, um pacote de fraldas e uma ventoinha. Com mãe e o bebé ao colo, no banco de trás, seguimos para a floresta, onde fomos deixá-las ao cuidado de familiares. Não sem antes termos atravessado uma ponte de tábuas suspeitas, sobre um rio de correnteza forte, e seguido carreiros onde só a sorte (ou a protecção divina) nos impediram de ficar atolados. No Brasil, os índices de violência contra mulheres são alarmantes: segundo o Mapa da Violência 2010, realizado pelo Instituto Sangari, uma mulher é assassinada a cada duas horas no país, o que faz do Brasil o décimo segundo no ranking mundial de assassinatos de mulheres. Quarenta por cento dessas mulheres têm entre 18 e 30 anos. A maioria das vítimas é morta por familiares, maridos, namorados, ex-companheiros ou homens que foram rejeitados por elas.
Notas finais: os jovens compreenderam o atraso do “seu” padre. E eu, depois do “banho de realidade” acabaria o dia num “sítio”, a almoçar debaixo de coqueiros, com uma família numerosa que adoptou o padre rebelde, galinha caipira, com couscous de coco e castanha do pará. É tão duro e simultaneamente tão generoso este pedaço de paraíso.
PS- A pasta do padre Sena contém além da alva para missa, anotações várias que servirão para verter em livro nos temidos editoriais.
Belas crónicas, estes deliciosos posts que nos manda da Amazónia!
Saudações
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